002. Das profundezas
Il buco (Michelangelo Frammartino, 2021) – Visions in Meditation #3: Plato’s Cave (Stan Brakhage, 1990)
Folha de sala escrita para o Cineclube Gardunha, em Portugal, a convite de José Oliveira. O texto acompanhou a sessão dupla de 14 de dezembro de 2022: Il buco (Michelangelo Frammartino, 2021) e Visions in Meditation #3: Plato’s Cave (Stan Brakhage, 1990).
Uma educação pela pedra: por lições;
para aprender da pedra, frequentá-la;
captar sua voz inenfática, impessoal
(pela de dicção ela começa as aulas)
— João Cabral de Melo Neto, “A educação pela pedra”
Em 1958, na região norte da Itália, foi terminada a construção do mais alto prédio do continente, com altura total de 130 metros. Três anos depois foi descoberta no sul a mais profunda caverna da Europa, com o ponto mais baixo a 700 metros da superfície. No seu movimento inicial, Il buco (2021) sugere a distância entre a clareza linear da Torre Pirelli e a escuridão labiríntica do Abismo Bifurto. É no vilarejo nas montanhas da Calábria que os camponeses, reunidos em volta de uma pequena televisão, assistem à reportagem sobre o edifício; é nesse vilarejo que serão instalados os pesquisadores responsáveis pela exploração da caverna. De um lado, o trabalho consciente, racional, direcionado pelo homem, resultado e motor da civilização. De outro, um trabalho secreto, silencioso, inconcebível em sua complexidade, marca de uma natureza da qual a humanidade não é senão testemunha. O terceiro longa-metragem de Michelangelo Frammartino oscila entre os dois polos, alterna seus desenvolvimentos, traça entre eles contrastes e simpatias.
Observar uma realidade arcaica, manifesta numa comunidade em contato com o impulso científico, é uma das estratégias do filme. Acompanhamos o trabalho e a morte de um velho pastor, bem como a chegada e a atuação da equipe de espeleólogos. Testemunhamos modos de vida ancestrais e modernos, ambos atravessados pelas forças da natureza. Como nos outros longas de Frammartino – os excepcionais Il dono (2003) e Il quattro volte (2010) –, a água, o fogo e a neblina são motivos recorrentes. A ausência quase completa de diálogos, o uso de não-atores, a observação calma e que desvia das convenções do teatro reforçam a carga documental. Trata-se de uma ficção, mas enraizada a tal ponto na realidade concreta, e conduzida com tanta nitidez, que um rosto marcado pelas rugas e a luz solar emergindo por entre as nuvens parecem colaborar no mesmo relato. Em determinado momento, a lanterna de um médico, conferindo a saúde do pastor, dá lugar à lâmpada dos exploradores, numa rima visual sugestiva de outras camadas de significado.
Conforme avançamos na operação dos espeleólogos, ganha a frente o caráter de aventura que logo se reflete no esforço da própria filmagem. Essa criação em condições extremas, nova na obra de Frammartino, é um dos dados mais impressionantes. A descida pela caverna tomava de quatro a cinco horas, e o mesmo tempo era necessário para o retorno. Durante semanas, o fotógrafo Renato Berta permaneceu na superfície, em comunicação por um cabo de fibra óptica, enquanto operadores chegavam ao lago subterrâneo para o registro que às vezes durava apenas 45 minutos. Essas decisões, tomadas ou transmitidas à distância, revelam uma concentração incomum, e que têm um peso correspondente no resultado. São momentos em que as escolhas de ângulo, ponto de luz, movimento de câmera e ponto de corte ganham uma intensidade especial, como descobertas sob um microscópio. Elas fazem mais do que apresentar o espaço: reorientam a atenção do espectador em torno dos espeleólogos, as figuras que servem de bússola no ambiente misterioso da caverna. A coragem e a inteligência necessárias para o trabalho surpreendem a cada protuberância ou concavidade, a cada suspense que segue os cortes para a escuridão. Absorvidos por essa fisicalidade, não podemos ignorar o delicado equilíbrio por trás da câmera. A paciência extraordinária da execução, a monumentalidade do cenário de ressonância mítica, a dilatação temporal que parece colocar a todos numa escala geológica servem ainda para aproximar Il buco de um caso célebre do cinema. Pensamos em 2001: A Space Odyssey (1968), cuja produção foi tão lenta e meticulosa que Stanley Kubrick a descreveu como “acompanhar o ponteiro das horas de um relógio”.
É também um cosmos assombroso e enigmático, e igualmente sublime, que aqui se descreve. Esta vocação é o que torna o filme de Frammartino parte de uma linhagem duradoura. Desde as suas origens o cinema nos ensinou a ver a natureza com um interesse particular, na expectativa de ali descobrir outras formas de tempo e sentido. Emoldurados pela duração e pela tela, os processos naturais não podem senão indicar as bases e os limites da humanidade. Filmes como Louisiana Story (Robert Flaherty, 1948), India: Matri Bhumi (Roberto Rossellini, 1959), Fata Morgana (Werner Herzog, 1971), O movimento das coisas (Manuela Serra, 1985) e Voci nel tempo (Franco Piavoli, 1996) mostram que o trabalho humano emerge e submerge diante do contínuo natural; que os ciclos da natureza são apenas mais longos que os da cultura, e que geram suas próprias ruínas; que nossos costumes, se vistos da maneira adequada, nos parecem tão insólitos quanto os de uma civilização alienígena; mostram, em suma, que nosso planeta, como os nossos sonhos, possui a característica paradoxal de ser o que temos de mais próximo e mais remoto.
Outro lugar nesta linhagem seria ocupado pelo curta-metragem de Stan Brakhage que complementa a sessão. Durante uma viagem pelo sudoeste dos Estados Unidos, Brakhage filmou as ruínas dos Anasazi, nuvens e tornados, as estradas e as paisagens naturais do Colorado. Na edição do material, um conjunto de cavernas serviu como ponto de ancoragem, ao redor do qual as outras imagens foram dispostas. Visions in Meditation #3: Plato’s Cave (1990) tem como referências para o seu título uma obra do modernismo (Stanzas in Meditation, de Gertrude Stein) e um dos mitos centrais da filosofia clássica (descrito por Platão na República). Se há semelhanças com Il buco no objeto central e no jogo com as polaridades, há diferenças cruciais na composição. Em vez do olhar estável de Frammartino – que parece, como um poeta épico, dar um lugar para todas as coisas –, a postura de Brakhage é essencialmente lírica, nos apresentando um fluxo incessante, direcionado por sua própria imaginação. As imagens de seu filme são fugidias, sempre no limiar da percepção; as coisas se formam e se deformam, surgem e desaparecem na luz e nas sombras. Brakhage nos mostra a realidade dos sentidos filtrada por uma tecnologia que ele manipula a ponto de dissolver as próprias noções de figura e fundo, de passado e presente. Somos colocados num estado próximo ao transe, num fascínio pela matéria mesma do cinema, sua textura, plasticidade e musicalidade. Em sintonia com as menores vibrações da imagem, reagimos às transformações do mundo como aos desígnios e às descobertas do próprio cineasta.
Se há uma ideia na qual os dois filmes convergem, é a da sala de cinema como ampliação ou renovação da caverna platônica. Seja por uma ficção baseada no documento, seja por um mergulho no lirismo, o que se projeta é uma investigação – da consciência mediada pela câmera, da câmera interagindo com a natureza, da natureza refletindo a consciência. A sala escura como o lugar onde afinamos os próprios instrumentos de nossa percepção, nos tornando atentos de uma só vez ao mundo e à sua mediação. Uma educação pela tela.