Texto escrito para o catálogo da mostra Filmes de formação, realizada no CineLab da Universidade Federal de Pernambuco entre 20 e 23 de maio, a convite de Brenda Valois.
Valeska G. Silva e Matheus Cartaxo, da Foco, também escreveram no catálogo. A edição 6-7 da revista já havia sido dedicada a Brisseau.
“Portanto”, disse eu, algo confuso, “precisaríamos comer de novo da árvore do conhecimento para recair no estado de inocência?”
“Naturalmente”, respondeu ele, “este é o último capítulo da história do mundo.”
— Heinrich von Kleist
1
Durante uma sessão espírita na sala de seu apartamento, um professor aposentado teve uma estranha visão: à sua frente estavam duas mulheres, uma era a sua jovem hóspede, a outra não tinha um nome. As duas se beijavam e se acariciavam sobre um altar. A visão era clara, como uma cena em pleno dia. A primeira mulher indicava um painel com estrelas. A segunda erguia as vestes negras em que logo estariam cobertas. No movimento de recuo da câmera, por entre os painéis da porta, Jean-Claude Brisseau contemplou a si mesmo contemplando o anjo da morte.
2
E como tudo havia começado? Um movimento de avanço da câmera, em um apartamento que talvez fosse o mesmo, revelou duas mulheres observando um cineasta durante o sono. Como sacerdotisas consagradas a uma ordem, elas pareciam vagar livremente no recinto.
Em outros dias o santuário alargou-se para toda a cidade, uma série de cômodos que o cineasta atravessou em busca de atrizes para o seu projeto. Quanto mais próximo de capturar o mistério, mais dura a punição que lhe havia sido prometida. No instante decisivo, sua vida foi salva por um dos anjos, mas ele permaneceu imobilizado e desfigurado como lembrança da transgressão.
3
A enfermeira de Céline se deparou com uma figura vestida de preto nos corredores da casa. A aparição observou Geneviève como se a conhecesse. Era sombria, em contraste com a luminosidade da amiga, presente em outra visão. As duas não sabiam e ninguém as teria dito, mas logo chegaria a hora de aceitar a metamorfose.
Anos antes, um adolescente perdido nos subúrbios já reconhecera um anjo em seu apartamento. Também a sua foi uma história de metamorfoses, um aprendizado por meio de transformações e rupturas.
4
As aparições, como entidades arcaicas, executam as sentenças e traduzem emanações do inconsciente. Tecendo e destecendo a vida dos personagens, aparecem como filhas da necessidade, a única força a não ter estátuas ou templos. Surgem em momentos de uma densidade insólita, em que irrompe algo que o cinema do período pareceu evitar: o retorno das imagens de um passado distante para dominar o palco, autônomas e soberanas.
5
Por vários séculos era comum que a pintura isolasse um certo número de formas, talvez um número vasto, mas claramente limitado, separado de todo o resto para que tomassem parte num jogo, seguindo apenas aquele registro como se para esgotar as suas combinações. Também o cinema se habituou a percorrer um repertório que só admitia dentro de certos limites. A cada filme, um leque de possibilidades.
Um cineasta persegue assim movimentos canônicos e intermediários, exuberantes e funcionais, voluntários e espontâneos. Eles devem ser mundanos ou hieráticos, sinuosos ou ameaçadores. Devem seduzir, intrigar, atingir a plenitude do arquétipo. Suas passagens de uma época a outra definem os contornos de uma mitologia.
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Diante de uma realidade dura, violenta, jovens avançam por tentativas e erros e têm suas trajetórias corrigidas ou estimuladas pelos adultos. Os adultos, mulheres em sua maioria, se afastam da sociedade ou nela procuram uma brecha que permita a experiência do sublime, conduzida ou sugerida por uma figura iniciática.
Un jeu brutal (1983) e À l’aventure (2008) terminam com paisagens ensolaradas: as duas protagonistas foram levadas àquele ponto por homens que falavam em nome da ciência. A professora de De bruit et de fureur (1988) olha o céu pela janela após ler a carta do aluno criminoso, agora na prisão. É também a vista de uma janela que conclui a história da enfermeira de Céline (1992) após despedir-se da amiga, agora no convento. A educação pressupõe dois termos, um ativo e outro passivo. Ambos delimitam, sabendo ou não, a moldura na qual ocorrem as metamorfoses.
7
Há sempre alguém que faz o caminho previsto, supostamente correto, e alguém que segue um desvio, ignorando ou superando as regras. Conforme passamos de um filme a outro, percebemos que a ascensão ocorre somente no segundo caso. As expectativas e os papéis naturais são assim invertidos: é a aluna quem ensina o professor em Noce blanche (1989), assim como é Céline quem cura a enfermeira. Concentrando a força transformadora, esses personagens tendem a desaparecer, a se dissolver naquele universo como se devessem tornar-se um só com a paisagem a ser encarada pelo outro. Ao final de cada uma dessas narrativas, contemplamos as testemunhas da morte e do milagre.
8
O cientista de Un jeu brutal acenou com uma expressão serena para a sua filha: não temos notícia de outro gesto semelhante de sua parte. Céline acenou para Geneviève, como Michel para Dora em La fille de nulle part (2012). Os sorrisos foram todos calmos, e assinavam com aquela distância uma leve aceitação do fim. Em L’Ange noir (1994), Stephane atirou em Aslanian, uma ação rígida, posada, de uma energia silenciosa. Mais tarde ela seria morta da mesma forma pela filha. É também com um tiro, e com a mesma inquietude muda, que Nathalie põe fim à vida de Christophe em Choses secrètes (2002).
Para a lei transitiva dos gestos, estas ações são fundamentalmente a mesma. Aquiles segura o pulso de Príamo na Ilíada, Odisseu segura o de Penélope na Odisseia: a metamorfose de um gesto, a passagem da assertividade à despedida. Como uma roda de variantes, esses momentos descrevem o raio de alcance de um mesmo elemento. Acenos, toques, carícias, tiros e olhares permeiam a obra de Brisseau, um vocabulário de relações pontuais e significativas.
9
Entre as anotações nos cadernos de Hawthorne há o esboço de uma narrativa: a humanidade, reunida em um imenso deserto, decide incinerar todos os objetos que simbolizam o mal, erigindo uma fogueira que alcança os céus à medida que destrói as armas, os brasões, as escrituras, o dinheiro, ignorando que o coração humano, raiz de todas as criações, permanece intacto.
É no fogo que Tessier joga os documentos que representam o seu passado, e é ao fogo que Céline decide entregar os seus pertences. Como na parábola de Hawthorne, ambos acreditam que transformar uma quantidade suficiente de matéria basta para realizar a metamorfose. É uma fogueira que o delinquente de De bruit et de fureur acende logo após matar o pai, a última autoridade a ser destruída. Linhas de fogo são deflagradas para salvar os jovens criminosos em Les savates du Bon Dieu (2000). Na iconografia de Brisseau, o fogo é essa ferramenta para amplificar o destino: consumir a matéria de modo que o passado seja aniquilado mas também reintegrado ao universo.
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Esses personagens refletem uns aos outros, transformam-se uns nos outros. As adolescentes de De bruit et de fureur crescem e trocam a violência pelo sexo na altura de Choses secrètes. Um tiro ressoa nas duas histórias. Nas duas, o que se segue é uma conversão. A enfermeira de Céline, tocada e ressentida com a profundidade espiritual, troca a meditação pela hipnose em À l’aventure, se deparando ali com os mesmos sentimentos. Uma levitação marca as duas histórias. Nas duas, o que se segue é um mergulho no passado.
Êxtase e possessão indicam um conhecimento metamórfico, que transforma a pessoa no momento em que o adquire. Cada vez mais, esses momentos tomam um lugar central nos filmes de Brisseau. Em planos abertos ou fechados, estáticos ou em movimento, são operações sempre decisivas, recortadas do fundo e observadas em si mesmas, como pedras recolhidas na mão.
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Sentada num banco à noite, olhando para os pontos brilhantes no céu, a Sandrine de À l’aventure vê uma tela escura e indiferente. As constelações, histórias que um dia foram indispensáveis, que acendiam a casa da memória, parecem a ela cobertas de um véu cético ou desencantado. É preciso a intervenção do velho professor para que ali seja projetado um sentido. Um céu estrelado foi também o ponto final para o velho professor em La fille de nulle part. Como as árvores movidas pelo vento em Céline, a imensidão do espaço cerca o drama de forma breve, mas incisiva: o som das folhas e o curso das galáxias indicam que a paisagem conhece ou prepara a jornada central.
Se os personagens avançam como se o cosmos esquecesse de si mesmo, é para que a reconquista da natureza tenha um papel no processo educativo. As cenas revelam assim as correspondências ocultas, como se cada filme devesse, com uma foice invisível, cortar delas um segmento.
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E como tudo havia começado? O erotismo nos primeiros filmes tinha uma luz difusa, quase romântica, um olhar fascinado e com um respeito que beirava a devoção. Na produção tardia, torna-se magnético, sob uma luz direta, levando a aproximações invasivas, obsessivas. A educação passa a residir no corpo, diz respeito a ele mais do que tudo: é na superfície dos olhares e das contrações musculares que as energias devem agora ser capturadas.
A orgia de Choses secrètes talvez represente um limite: uma profusão de corpos anônimos, enlaçados e contorcidos na missa negra que a câmera registra enquanto se desloca sem ênfase ou hesitação. É como se, uma a uma, de forma vaga e silenciosa, aquelas mulheres tivessem se reunido enquanto lá fora os anos passavam, vidas eram geradas e encerradas, como se nada mais soubessem, absorvidas somente pelo dever de fixar sua postura na imagem.
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Há uma semelhança aparente nesses filmes, entre o modo como o desejo atua no corpo durante o sexo e o modo como o conhecimento atua na mente durante a reflexão. Corporal ou mental, místico ou científico, esse aprendizado é o único tesouro que sobrevive às atribulações.
O controle de si mesmo, a aceitação dos próprios limites, uma entrega às forças que regem o universo e que termina com elas se identificando: estes são os termos do processo educativo. A revelação tem lugar somente quando o ser é purificado, despido de tudo o que não caracteriza o seu núcleo mais interior. Crime, vingança e rivalidade são assim deixados para trás como em uma troca de pele. No que talvez seja o desvio mais relevante da linhagem trágica, essas cadências tendem a se resolver na passagem do terror à piedade.
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“O faraó acaba de morrer. Sua forma imortal foi transportada para a grande pirâmide. Lá, ele repousa com seu dorso para o oeste, no mundo das trevas, mas encarando o leste, pronto para renascer como Osíris, na aurora de todos os dias. Quando ele desejar, poderá adentrar a barca do Deus do Sol e navegar na região das estrelas, aquelas pepitas imperecíveis de ouro flamejante no céu.”
Entre as frases deixadas pela Antiguidade, entre aquelas que ganharam com o tempo o estatuto de fórmulas perenes, há uma frequentemente citada : filosofar é aprender a morrer. O conhecimento, de si mesmo e sobre o mundo, nos prepara para a metamorfose final, é ele mesmo o início desse processo. Rever os filmes de Brisseau, notando a geometria que emerge desse conjunto, com suas repetições e inversões, nos permite imaginar nessa obra uma arquitetura própria, direcionada talvez para esse momento. No centro dela está o próprio cineasta, cercado pelos ícones que representou de maneira expressiva e que o acompanham como guardiões pela eternidade.