020. O cineasta como compositor
Informações sobre o curso – Dimitri Kirsanov, “Da síntese cinematográfica” (1934)
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As inscrições podem ser feitas até um dia antes do início das aulas. Mas a partir de hoje os alunos devem receber o acesso ao drive com os materiais – os filmes a serem analisados e os textos sobre eles. Como é um curso bastante voltado à leitura e à discussão dos textos, uma inscrição em cima da hora significa menos tempo para conferir os materiais da primeira aula.
Você olha um relógio. Ele funciona, mostra as horas. Você tenta compreender como ele funciona e o desmonta. Ele não anda mais. E no entanto essa é a única maneira de compreender...
— Andrei Tarkovsky
O texto a seguir é uma tradução minha do artigo “De la synthèse cinématographique”, escrito por Dimitri Kirsanov à época de Rapt (1934), seu primeiro filme sonoro.
Antes de se tornar um cineasta, Kirsanov foi músico profissional. Ele foi provavelmente o primeiro a se referir ao seu papel como o de um compositor. O ponto de vista é análogo àquele proposto por Sergei Eisenstein no mesmo período. A ideia de “montagem”, na União Soviética dos anos 1920, tinha o mesmo caráter totalizante e representava a mesma síntese da criação cinematográfica que a de “composição” para Kirsanov. Nos dois casos, tratava-se de encontrar, para o artista do cinema, um termo capaz de integrar todas as etapas e técnicas, que permitiria ver o seu trabalho como um processo, senão único, ao menos unificado na concepção do criador. Décadas mais tarde, nomes como Robert Bresson e Hollis Frampton recorreram à mesma expressão, mas pontualmente e sem um discurso que desse a ela a mesma centralidade.
A música foi para Kirsanov o modelo da arte temporal e capaz de coordenar diferentes elementos em relações complexas. O uso de repetições, de variações, a atenção para combinações sucessivas e simultâneas, as estruturas pensadas quase estritamente a partir de temas e motivos são características da linguagem musical que ele procurou aplicar a uma arte historicamente associada não só à fotografia mas também à dramaturgia. É significativo que Kirsanov aplique uma forma de pensamento extremamente abstrata a um contexto narrativo. Esse é o caráter geral, até mesmo universal do seu argumento, o que o torna valioso para lidar com filmes de procedências e estilos variados.
É também o que torna a ideia de composição uma chave para o estudo da análise fílmica. Composição e análise podem ser pensadas como vetores inversos, convergindo no ponto representado pela obra, onde cristalizam e reencontram suas diretrizes. De um lado, a reunião de partes guiada por intenções mais ou menos conscientes; a busca por certos efeitos locais, tendo por horizonte uma visão geral, bem definida ou vagamente aproximada; a interação com as vicissitudes do contexto, do momento de captura de uma imagem ou de um som, com as próprias condições materiais do registro, para resultar em um só objeto. Do outro lado, a separação das partes; o olhar que confere o que, daqueles mesmos efeitos, é devido a esta ou aquela operação; que se pergunta quais camadas de sentido podem ser percebidas por um olhar atento e paciente; e qual consciência é possível ter daquele obra, daquela arte, quando ela é não apenas vista e ouvida mas atravessada inúmeras vezes, conhecida por dentro, intimamente.
Dimitri Kirsanov, “Da síntese cinematográfica” (1934)
Muitas vezes tentamos comparar e relacionar o cinema a outras artes. O cinema enveredou, desde a sua origem, por vários caminhos sem saída cujo emaranhado sem dúvida tornava necessárias essas comparações. Há, porém, um fato que vai contra qualquer comparação possível: todas as artes operam no tempo ou no espaço. Estas são, respectivamente, as artes dinâmicas e as artes plásticas. O cinema opera simultaneamente no tempo e no espaço. Parece então lógico, a priori, que aquelas comparações só possam trazer contradições, até mesmo paradoxos. Contudo, ainda insistimos (e cada vez mais) em procurar bases comuns entre o cinema e a pintura, a literatura, a música, o teatro. Um dia certamente perceberemos que o erro de colocar o cinema no encalço de outra arte (relacionando-o a ela) apenas atrasa o surgimento da sua verdadeira base, do seu verdadeiro caminho. Repito: ao construirmos uma teoria, talvez parcialmente defensável em si mesma, da ligação do cinema com as artes plásticas, demolimos automaticamente a outra teoria, a do cinema como arte dinâmica. Das duas, uma: optar por uma dessas teorias, ou então combiná-las, fundir as duas bases elementares da arte num único elemento, ou seja, finalmente criar uma nova estética, a do cinema (na minha opinião) autêntico, isto é, do cinema em si. Este é o dilema colocado pela situação atual.
Consideremos que as artes plásticas (matematicamente falando) sejam igual ao valor x e as artes dinâmicas ao valor y. Consideremos que o cinema possa combinar estas duas artes. Poderíamos então estabelecer que a função de x e y é igual a z, por exemplo: F (x, y) = z. Os valores x e y, sem perder o significado, tornam-se partes constituintes de z, sem no entanto poderem exprimir por si próprios, para além da sua combinação, a natureza de z, ou seja, o que é, a rigor, o cinema.
A minha comparação talvez fosse mais clara se eu estabelecesse um paralelo na química: dois átomos de hidrogênio e um átomo de oxigênio se combinam em uma molécula de água (2H : O = H2O). A água é um elemento novo do qual poderíamos, se necessário, extrair os elementos constituintes H e O, que permanecem inalterados em si mesmos, mas cuja combinação tem propriedades muito diferentes, pois não se trata mais de dois gases, mas de um líquido. Toda a ambiguidade entre cinema e teatro se encontra neste fato.
O cinema dos últimos anos é sobretudo teatro filmado, sendo para o teatro o que um carro rápido é para um cavalo lento. Este cinema não tem um uso para a música mais do que o teatro quando recorre à música incidental. O papel da música se torna supérfluo, quando não um artigo de luxo: a música preenche uma cena, romantiza um diálogo, ou simplesmente cumpre o papel de ruído de fundo. A colaboração entre o compositor do cinema e o da música, no entanto, é possível, desde que ambas as partes tenham compreendido o significado de suas respectivas artes. Usei deliberadamente a palavra “compositor de cinema”, porque isso implica não a profissão de “diretor” como a entendemos nos filmes falados, mas sim um trabalho de coordenação. O compositor do cinema colabora com o roteirista, com o autor dos diálogos, com o operador de câmera, dirige a própria filmagem, edita o filme, consulta o compositor da partitura musical, finalmente preside a mixagem definitiva das trilhas sonoras: palavras, ruídos e música. Isto envolve, sem dúvida, múltiplos talentos e conhecimentos básicos. Mas não deveria um maestro digno desse nome conhecer as possibilidades específicas de cada instrumento, praticar harmonia, contraponto, enfim, saber ler e compreender uma partitura musical, como se fosse ele mesmo o autor? Hoje podemos improvisar a direção e com isso realizar perfeitamente um filme comercial, isto é, uma peça filmada. Na verdade, a peça foi escrita por um autor que provou o seu valor no palco, que não possui nenhuma responsabilidade em nosso contexto. Essa peça é muitas vezes editada por um especialista, um trabalho que infelizmente não costuma render quase nada. Os atores que trabalham no cinema são atores experientes, que obviamente conhecem os truques do seu ofício melhor do que qualquer diretor novato. Contratamos um arquiteto-decorador que constrói cenários, sempre idênticos: um amplo lobby de hotel, um lounge moderno, etc. Um fotógrafo que conhece o assunto cuida da iluminação; um especialista em foxtrot ou java, em cantigas sentimentais ou obscenas. E mais um “especialista”, no papel do homem insubstituível, monta esses poucos esboços vagamente inspirados no que se chamava montagem (felizmente ainda existem filmes reais com montagem real). Assim o filme fica pronto e sai como um bolo quente. O diretor, confortavelmente instalado com um casaco de pele no mais autêntico estilo de Hollywood, aparece como o personagem importante, quando foi, em suma, apenas uma mosca na parede.
Espera-se que um dia seja fundado um conservatório para compositores de cinema. O programa incluirá, entre outras coisas, o estudo dos fundamentos da música. Não é necessário que o compositor de cinema seja músico, mas é fundamental que conheça a essência e os princípios da música. Isso o permitiria conviver com o músico de cinema, e também não o impediria de exigir coisas incompatíveis com a arte dos sons, o que talvez o levasse à procura de novos caminhos, graças à interpenetração entre as duas artes. Para que se entendam, ainda que de forma rudimentar, os dois devem ter uma linguagem comum.
Também é fácil, senão essencial, chegar a um acordo prévio entre músico e cineasta. A gênese de um filme se reduz a um grande volume, onde são planejados os mínimos detalhes da obra: posições de câmera, iluminação, etc. Por quê não planejar também, a partir deste momento, e estabelecer definitivamente, o papel exato da música? Desta forma, evitaríamos muitos embates entre colaboradores e disparates musicais que dão origens a formas híbridas. O resultado, assim, poderia se traduzir em uma obra construída solidamente, onde a música, a imagem e o diálogo formariam um todo.
— La revue musicale, vol. 15, n. 151 (dezembro de 1934), pp. 350-351.