001. Notas sobre David Lynch e Kenneth Anger
Prosa e poesia – Cena e sequência – Realidade e imaginação – Iconografia e perversão – Metonímia e metáfora
Há alguns meses, após a revisão de Twin Peaks – as três temporadas e o filme –, comparações entre David Lynch e Kenneth Anger surgiram em conversas que tive com amigos. Mais recentemente, decidi rever outros filmes para organizar as ideias. A série de oposições que estrutura essas notas serve como esquema provisório, uma tentativa de perceber semelhanças e diferenças entre eles.
Não considero aqui tudo o que produziram, mas sim o que me parece mais representativo: de um lado, Fireworks (1947), Inauguration of the Pleasure Dome (1954), Scorpio Rising (1963), Kustom Kar Kommandos (1965), Invocation of My Demon Brother (1969), Lucifer Rising (1972); do outro, Blue Velvet (1986), Twin Peaks (1990-91), Fire Walk with Me (1992), Lost Highway (1997), Mulholland Drive (2001), Inland Empire (2006), Twin Peaks: The Return (2017).
Prosa e poesia
Uma diferença entre David Lynch e Kenneth Anger talvez seja análoga à diferença entre prosa e poesia. Mais especificamente, à distinção feita por Maya Deren – a prosa como a ênfase no avanço “horizontal” das imagens, o encadeamento delas num acúmulo direcionado; e a poesia como a ênfase nas incursões “verticais”, as conexões e o acúmulo das imagens numa espécie de presente eterno.1 É uma divisão que remete ainda àquela feita por Paul Valéry, de que “a prosa sempre subentende o universo da experiência e dos atos”, um universo prático, de objetivos; enquanto a poesia sugere um “universo de relações recíprocas, análogo ao universo dos sons”, em que “a ressonância prevalece sobre a causalidade”.2
Anger, como boa parte da vanguarda americana – e do cinema experimental em geral –, organiza os filmes em estruturas mais compactas do que aquelas exigidas por narrativas longas. O formato do “filme de transe”, do filme como sonho de um personagem, logo dá lugar em sua obra a rituais que dispersam o encadeamento ou até mesmo a moldura de uma narrativa. Não foi por acaso que o relato canônico da vanguarda americana teve como modelo o discurso sobre a poesia romântica, com seu impulso lírico, mais do que dramático.3 Após Fireworks (1947), o que Anger parece buscar é algo que o permita desfilar as imagens, deixando que a ressonância plástica e semântica delas preencha a duração. Em vez de tramas, Anger lida com situações, um mínimo de contexto para que os objetos e as ações sejam apreendidos e algum valor seja dado a eles. Não é um cinema de complexidade gramatical, lógica ou emocional, mas sim de tradução do imaginário, de exploração visual, e de um caráter encantatório, até narcótico das imagens. Certas partes da realidade foram por ele selecionadas e agora nos são apresentadas como em uma cerimônia, uma ordem elementar, para que sejamos testemunhas de sua intensidade e de seus efeitos. Em Inauguration of the Pleasure Dome (1954), Invocation of My Demon Brother (1969) e Lucifer Rising (1972), as cerimônias são literais; em Scorpio Rising (1963) e Kustom Kar Kommandos (1965), eventos cotidianos ganham um tom cerimonial.
De início, Lynch poderia ser colocado na tendência oposta, já que tende a partir de uma base narrativa. Os poucos filmes em que Lynch se desfaz completamente da narrativa – os seus primeiros curtas – não são indicativos do que, a meu ver, é o seu grande talento. Qual é esse talento? É uma capacidade de representar o inconsciente, não de um personagem, mas da própria narrativa. Lynch normalmente retoma elementos que haviam sido justificados pela trama e os mistura a outros que parecem absurdos na superfície, mas que guardam uma proximidade misteriosa dos temas centrais. A recorrência de sonhos e visões em seus filmes é significativa: o que representam é algo como um apocalipse local, um desvelamento momentâneo da ordem subjacente. É o que dá a esses momentos a impressão de serem mergulhos verticais, eventos fora do tempo, além do avanço cronológico. Nesses termos, pode-se dizer que Lynch recorre a estruturas da prosa e, dentro delas, constrói momentos poéticos.
Cena e sequência
A cena prioriza a unidade de espaço, tempo e ação – seu modelo é o palco. A sequência toma liberdades em relação a esses critérios – sua unidade é semântica ou tonal. A recorrência de músicas que desconectam a banda sonora da realidade visível e parecem cercar as imagens com um sentido externo a elas é típica das sequências. É um dos pontos de ligação entre Anger e Lynch.
A ausência de som direto nos filmes de Anger torna a lógica da sequência ainda mais evidente, já que as relações espaciais e temporais entre os planos não podem ser tão bem definidas, e o sentido que emerge deles é constantemente influenciado pela música. O modelo do cinema de Anger é o da manifestação visionária, da imersão naquele universo sem quaisquer referências que não as do próprio ritual. A orientação concreta na cena, a psicologia como função dos comportamentos, a plausibilidade da dinâmica temporal e outras exigências naturais da narrativa permanecem fora de alcance – não tensionam a experiência do espectador.
É diferente o caso de Lynch. Uma vez que convoca a dramaturgia, ele passa a trabalhar com cenas, ou ainda, a ter nas cenas um modelo central, que o ajuda a definir a realidade considerada. No geral, Lynch recorre às convenções do melodrama, a personagens beirando os arquétipos em tramas que raramente destoam de gêneros estabelecidos, sobretudo o film noir. Não é da originalidade desse recorte que costuma vir a força de seus filmes; mesmo quando suas premissas são marcantes, elas normalmente giram em torno de imagens específicas. Uma hipótese: Lynch busca, dentro de um conjunto de situações, os momentos-chave nos quais tudo pode ser processado no formato da sequência. Seu recurso frequente a estruturas binárias, a repetições de acontecimentos, a duplas de personagens – tudo isso indica uma tentativa de esquematizar a narrativa ou de apostar em suas conexões distantes, mais do que em conexões locais, de uma cena a outra.
Blue Velvet (1986), por exemplo, é um filme que trabalha com motivos hitchcockianos, mas não é orquestrado e ritmado como os filmes de Hitchcock. É um noir modernizado, em formato largo, mas sem a fluidez característica de um diretor como Otto Preminger. Em uma revisão do filme, alguns cortes e ângulos inclusive me pareceram rudimentares, como se o nível microscópico da construção da cena não recebesse a mesma atenção da macro-estrutura, ou da construção da sequência. O que Blue Velvet tem a seu favor – o que prioriza – é uma atenção ao clima e à atmosfera. Há momentos em que as luzes, as cores, os sons, os atores, a duração se unem para definir a estranheza daquela realidade, que termina ganhando uma densidade própria. A força está no acúmulo desses elementos, não em suas conexões imediatas. Os cenários são fundamentais nesse processo; há uma discrepância entre os lugares que parecem funcionais e aqueles que representam algo único da realidade distorcida criada por Lynch. É o apartamento de Dorothy, fechado e noturno de maneira irreal, caracterizado pelas texturas e que muitas vezes é filmado no ângulo distanciado, semelhante ao de uma câmera de segurança, que Lynch mais tarde aplicou a outros locais. Lost Highway (1997), por sua vez, é um filme que avança por situações autocontidas, isoladas por fades que parecem duplicar a escuridão dos ambientes. Os eventos ali nascem e morrem no fundo sombrio, como as figuras de Anger que parecem entrar e sair livremente de um palco mental. O diálogo com o homem misterioso na festa é também uma clara demonstração de como a narrativa se apoia em ajustes tonais – um princípio que retorna no diálogo com o cowboy em Mulholland Drive (2001).4
É também por isso que Lynch possui uma habilidade invejável e que não pode sequer existir em um cinema como o de Anger. É a capacidade de criar rupturas narrativas, de atravessar um limiar que de repente contamina tudo o que foi visto até aquele ponto. É a transformação do protagonista em Lost Highway, a inversão dos papéis em Mulholland Drive, e o que talvez seja a ruptura mais impactante de sua obra – o flashback de Twin Peaks: The Return (2017) que serve como mito de criação da série. São gestos narrativos ousados, que nos levam a outro espaço ou tempo, que parecem ignorar a lógica e a memória, tornando ainda mais poderosa a impressão de que presenciamos algo de uma só vez íntimo e remoto. Muitas vezes representam o centro da espiral narrativa. São também, todos eles, momentos organizados em sequências, mais do que em cenas.
Realidade e imaginação
Um tópico que deve necessariamente ser abordado entre o cinema narrativo e o experimental é o da relação entre realidade e imaginação. O cinema comercial tende a reconhecer uma divisão entre as duas esferas, ao passo que o cinema experimental busca, na maioria das vezes, borrar essa divisão. Filmes narrativos costumam ter “cenas de sonhos” porque neles há uma vigília bem definida para servir de contraste; filmes experimentais muitas vezes “são sonhos”, ou ainda, seguem uma lógica onírica do início ao fim, sem a vigília como referência.
Historicamente, o cinema comercial absorveu algumas descobertas do cinema experimental de modo que a distinção permanecesse. Por um lado, é o comportamento previsível da indústria, com suas noções de verossimilhança e um decoro adequado aos diferentes gêneros. Por outro lado, é um problema que reflete tensões dentro da própria linhagem experimental. Uma pergunta colocada por diversos nomes das vanguardas foi: como utilizar o potencial realista do cinema para representar a imaginação? Em vez de seguir direto rumo à abstração plástica, como seria possível utilizar as ilusões do realismo para criar, a partir delas, algo que não se enquadra nas normas hollywoodianas?
Alguns filmes de Anger seguem inteiramente a lógica onírica, mas este foi para ele um processo gradual e acidentado, e não caracteriza toda a sua obra da mesma forma. Em Fireworks, o sonho é justificado na diegese; em Inauguration of the Pleasure Dome, não parece haver realidade fora da lógica dos sonhos; em Scorpio Rising, a realidade não toma sequer os atributos visuais do sonho, joga com a verossimilhança até o fim, apesar de multiplicar as substituições e os deslocamentos.
Lynch segue quase sempre as convenções industriais do sonho dentro do filme. Entre Blue Velvet e Lost Highway, os sonhos são breves, invadem a cena e distorcem o que até então parecia ser estável – por meio de closes extremos, alterações radicais na mixagem, câmera lenta ou tremida, desfoques, sobreposições, ou seja, mudanças no decoro da encenação. Mas onde estão os sonhos em Mulholland Drive, e principalmente em Inland Empire? O que diferencia o sonho da realidade alucinatória que parece constante nesses filmes? Twin Peaks: The Return parece responder à pergunta com a afirmação de que a realidade que acompanhamos na tela é ela própria imaginada, que o cotidiano é somente uma dimensão naquele universo, e não a principal.
Qual o papel do roteiro nesse contexto? Pensando no formato tradicional, de um texto dramático a ser respeitado da filmagem à edição e que já traz em sua lógica algo das exigências cênicas, talvez o ideal para alcançar esses resultados seja trabalhar sem um roteiro detalhado. O próprio Lynch descreve em entrevistas como seu processo criativo envolve ideias como imagens encontradas quase por revelação inconsciente. O esforço de justificá-las, de dar a elas um contexto ou direcionamento, parece a ele mais uma adequação ou mesmo uma concessão. Uma descrição sumária desse processo é que o cineasta inicia com uma imagem, que o leva à premissa básica; dela, passa a um esquema, que encaixa nas convenções de um gênero; em seguida, busca outras imagens, que o permitam sintetizar os movimentos mais pregnantes dessa narrativa. É outro ponto no qual Lynch e Anger parecem aproximados. Assim como no surrealismo, esses filmes giram em torno de poucas imagens. Primeiro surgem essas imagens, como obsessões ou revelações; só depois as estruturas são organizadas. A diferença seria, então, que Lynch procura, ou até mesmo necessita, por exigências internas ou externas, justificar a tensão que existe ao redor dessas imagens primárias, ao passo que Anger pode se dedicar inteiramente aos seus desdobramentos plásticos.
O modelo narrativo da investigação talvez pareça natural a Lynch por ser um modelo de descoberta intelectual, que tenta aplicar a razão para desvendar o significado das coisas. É um princípio central da narrativa, até mesmo paradigmático do cinema comercial, e que toma em sua obra um papel distinto. O que se descobre nas investigações de Twin Peaks é justamente que a razão é insuficiente, e não é diferente o resultado em outros filmes. Em vez de uma realidade compreendida por inferências, de efeitos que levam às respectivas causas, há uma profusão de ecos, saltos, metamorfoses, objetos que parecem existir concretamente mas também como signos de uma linguagem. As identidades costumam ser postas em jogo nesses filmes porque as noções de realidade são questionadas: se os elementos já conhecidos ganham outro sentido nessa dimensão, por quê aquele mundo – ou a própria consciência que se reconhece nesse mundo – seria real ou unitária? Uma fratura local sugere uma fratura ontológica.
Iconografia e perversão
Pensando na trajetória de Anger, o “filme de transe”, o sonho individual e narrado, é seguido pelo “filme mitopoético”, em que a unidade psicológica é desmembrada em uma série de figuras, apresentadas em uma forma menos linear. Inauguration of the Pleasure Dome, Invocation of My Demon Brother e Lucifer Rising constituem panteões tomando emprestados mitos de tradições distantes. Anger, como seguidor de Aleister Crowley, propõe uma espécie de contraponto entre esses mitos, mas não se pode ignorar que ele acrescenta outros elementos, que remetem ao próprio cinema. Entre as divindades gregas e egípcias de Inauguration of the Pleasure Dome, surge uma figura baseada em Cesare, o servo sonâmbulo de Caligari. Em Scorpio Rising, Jesus Cristo é parte de uma cadeia iconográfica que inclui Adolf Hitler e Marlon Brando. O livro de Anger, Hollywood Babylon (1959), é uma clara tentativa de imaginar – descrever de forma hiperbólica e distorcida – atores e diretores de Hollywood como uma nova mitologia, com deuses, demônios, escândalos fundadores e uma iconografia própria. Parece relevante pensar os filmes de Lynch em relação a essa abordagem, não somente com a mitologia hollywoodiana que informa os gêneros em que ele trabalha. O horizonte de Twin Peaks não se revelou um panteão de deuses e semideuses?
Quando performances ocorrem nos filmes de Lynch, elas costumam ter um lado nostálgico ou artificial, um eco da cultura americana dos anos 1950, vista como modelo ambíguo, de uma inocência sedutora, frágil e sinistra. “Blue Velvet”, a canção, já indicava esses fatores (já era parte da trilha sonora de Scorpio Rising), assim como o Double R Diner em Twin Peaks e a cena com o teste das cantoras em Mulholland Drive. Partindo da mesma cultura americana dos anos 1950, Anger ora recorre à imagem nostálgica, ora destaca os gestos que revelam mais diretamente a perversidade inscrita naquele contexto – Kustom Kar Kommandos e Scorpio Rising talvez formem aqui uma polaridade. É o tema da perversão de uma imagem oficial, que Anger parece conduzir até um desmembramento dionisíaco, e que na obra de Lynch é mais controlado, provavelmente devido à sua postura interessada na tensão com a iconografia predominante – sua Hollywood é a de Sunset Boulevard (Billy Wilder, 1950), consciente das camadas perversas, mas também da importância do decoro que as encobre. O princípio operante parece ser o de que, quanto mais idealizada é a superfície, mais infernal é a camada subjacente.
Uma citação me parece descrever com exatidão a abordagem de Lynch nesse contexto:
Seus heróis e vilões existem primeiramente para simbolizar um contraste entre dois mundos, um deles acima da experiência cotidiana, e o outro abaixo dela. Primeiro, há um mundo associado à felicidade, à segurança e à paz; a ênfase é dada à infância ou à “inocência”, ou no período pré-genital da juventude, e as imagens são de primavera e verão, flores e luz solar. Eu chamarei este de o mundo idílico. O outro é um mundo de aventuras atraentes, mas aventuras que envolvem separação, solidão, humilhação, dor e a ameaça de ainda mais dor. Eu chamarei este de o mundo demoníaco ou noturno. Devido à forte tendência polarizante do romance, normalmente somos carregados diretamente de um a outro.5
Não é este o movimento que define Blue Velvet, Twin Peaks, Mulholland Drive? O trecho foi retirado de The Secular Scripture, livro de Northrop Frye sobre o romance. Não o romance moderno, realista e burguês, mas o romance antigo, mais próximo de fábulas e contos de fadas. Em termos de estrutura, é um gênero que assemelha-se aos mitos. Uma tendência da mitologia é à integração ou coordenação entre as histórias de modo que elas formem um grupo coeso; outra é a de absorver histórias já existentes, transformando lendas e contos locais para que façam parte do conjunto. Na era do cinema, a tradição que mais parece caracterizar uma mitologia universal – por seu alcance, por sua centralidade na cultura, por sua absorção onívora de outros mitos – é a mitologia hollywoodiana.
Metonímia e metáfora
Na Ilíada, a descrição da ação muitas vezes dá lugar a uma incursão metafórica. Um personagem é comparado a alguma coisa – Aquiles, por exemplo, é comparado a um leão. O texto nos leva então para a realidade da própria metáfora. Por alguns versos, tudo é descrito nos termos do leão, passando da guerra de Tróia ao domínio dos animais. O leão ataca outros animais e segue vitorioso, e quando retornamos à guerra, a ação continua como se a batalha já tivesse chegado ao fim. A descrição do leão substituiu a de Aquiles, e se o leão destruiu os outros animais, então Aquiles destruiu os outros guerreiros.
A forma complementar seria a da metonímia, caracterizada não pela substituição, mas pelo encadeamento. No contexto do cinema, a adaptação mais célebre dessa divisão é a de Roman Jakobson:
O desenvolvimento de um discurso pode ocorrer através de duas linhas semânticas: um tópico pode levar a outro por semelhança ou por contiguidade. O caminho metafórico seria o mais apropriado no primeiro caso, e o caminho metonímico no segundo caso, já que encontram sua mais condensada expressão respectivamente na metáfora e na metonímia.
A primazia do processo metafórico nas escolas literárias do romantismo e do simbolismo tem sido repetidamente reconhecida, mas ainda é insuficiente o reconhecimento de que a predominância da metonímia subjaz, e na verdade predetermina a chamada tendência “realista”, que pertence a um estágio intermediário entre o declínio do romantismo e a ascensão do simbolismo, e que se opõe a ambos. Seguindo o caminho das relações contíguas, o autor realista faz digressões metonímicas da trama à atmosfera, e dos personagens ao ambiente, no espaço e no tempo. Ele tende aos detalhes sinedóquicos.
Um exemplo a ser destacado na história da pintura é a orientação claramente metonímica do cubismo, na qual o objeto é transformado num conjunto de sinédoques; os pintores surrealistas responderam a isso com uma atitude obviamente metafórica. E desde as produções de D.W. Griffith, a arte do cinema – com sua capacidade altamente desenvolvida de mudar o ângulo, a perspectiva e o foco dos planos – rompeu com a tradição teatral e alcançou uma variedade sem precedentes de close-ups sinedóquicos e planos metonímicos de maneira geral. Em filmes como os de Chaplin e Eisenstein, esses procedimentos são tomados por uma montagem nova, “metafórica”, com suas “fusões” – as símiles fílmicas.6
Nos filmes de Eisenstein, isso tende a acontecer em ambientes específicos. A realidade histórica é filmada por ele em um processo metonímico, de modo a contextualizar ao máximo a arquitetura e as ações; mas quando se desloca para o eixo metafórico, o espaço é escuro, quase anônimo, sem referências temporais, como se ali fosse mostrado um mundo de ideias. É onde se multiplicam estátuas, animais, ícones – elementos isolados ou sobrepostos, que servem como imagens paralelas das ações centrais.
Este é o espaço recorrente nos filmes de Anger. Em vários deles, atravessamos quartos, palcos, corredores, ambientes fechados e abertos, mas chegamos invariavelmente àquela escuridão nebulosa onde objetos tornam-se imagens puras, a serem combinadas como motivos. É o espaço que surge já no início de Fireworks; no qual Inauguration of the Pleasure Dome se desenvolve em sua quase totalidade; que retorna em Invocation of My Demon Brother; e que surge até mesmo na tela da televisão em Scorpio Rising.
Há um princípio semelhante nos filmes de Lynch, embora a tendência na sua obra seja integrar as transformações na diegese, ou seja, dar a elas um mínimo de justificativa na realidade cênica. Lynch frequentemente modifica a atmosfera das cenas para indicar que estamos sendo levados a outra dimensão da realidade. É quando são manipuladas as leis da física, reforçando que estamos em outro domínio, mostrando que a natureza ali não é a que conhecemos. São as inversões das falas e dos movimentos no Black Lodge, as chamas invertidas em Lost Highway, a separação de imagem e som no Club Silencio, as luzes estroboscópicas e os tecidos esvoaçantes em vários de seus filmes.7 As salas oníricas de Lynch parecem ser os espaços que concentram essa lógica, como as câmaras centrais do universo metafórico; ao redor delas, em outros momentos da narrativa, essas operações ocorrem em menor grau, ou de forma dispersa, quase codificada (os nomes que se repetem, as trajetórias paralelas). São ambientes que costumam ser presididos por uma entidade maligna. O homem misterioso de Lost Highway é uma variante do mestre de cerimônias que também surge em Mulholland Drive e nas entidades do Black Lodge. Anger já incluía magos e sacerdotes como as figuras coordenadoras de seus rituais, igualmente capazes de manipular a realidade. Por quê o caráter negativo, até diabólico dessas figuras? Seria por uma ligação entre o inconsciente e as forças disruptivas, entre a plasticidade da imaginação e a possibilidade de com ela transformar todos os valores? Lembremos do verso da Eneida que servia de epígrafe à Interpretação dos sonhos: “Se não posso dobrar os poderes celestiais, agitarei o Inferno.”
Uma formulação concisa desses termos está no debate “Poetry and the Film: A Symposium” [1953], em Film Culture Reader, ed. P. Adams Sitney (Nova York: Cooper Square, 2000), p. 178.
Paul Valéry, “Acerca de O cemitério marinho” [1936], em Variedades, trad. Maíza Martins de Siqueira (São Paulo: Iluminuras, 2011), p. 177.
O “filme de transe” é um dos gêneros comentados por P. Adams Sitney em Visionary Film: The American Avant-Garde, 1943-2000 (Nova York: Oxford University Press, 2000), a morfologia histórica mais conhecida da vanguarda americana. Uma versão resumida dela está no texto “The Idea of Morphology” (1972).
O modelo de Lynch nessas cenas parece ser o diálogo entre Jack Torrance e o garçom em The Shining (Stanley Kubrick, 1980). É outra cena cujo grande trunfo é a mudança da atmosfera, ajustando a velocidade dos atores, o som de fundo e a escala de planos para marcar a transformação no momento exato. É também uma cena de revelação sinistra, como costumam ser os diálogos de Lynch.
Northrop Frye, The Secular Scripture: A Study of the Structure of Romance (Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1978), p. 53.
Roman Jakobson, “Two Aspects of Language and Two Types of Aphasic Disturbances” [1954], em Selected Writings, vol. II: Word and Language (Paris: Mouton & Co., 1971), pp. 254-256. Um comentário anterior de Jakobson sobre o tema está em “Decadência do cinema?” [1933], em Linguística. Poética. Cinema (São Paulo: Perspectiva, 2007).
O modelo aqui parece ser o Cocteau da trilogia de filmes sobre Orfeu. Uma diferença é que Cocteau parece definir a sua mitologia a partir de outras artes, ao passo que Lynch recorre à memória iconográfica do próprio cinema.