Anos atrás, perguntei a alguns amigos se tinham cenas de filmes preferidas. Quais cenas, e por quê achavam tão marcantes? Conforme apareciam as listas, também surgiam as impressões do que parecia dar uma unidade a elas.
A curiosidade básica era sobre o que chamava a atenção em determinados momentos no cinema: o que, naquela unidade dramática que convencionamos chamar de “cena” (e que às vezes se confunde com a “sequência”), parecia interessante a ponto de se destacar do conjunto, e muitas vezes a permanecer mesmo quando o resto do filme se dispersou na memória? Quais as tendências mais comuns dessas cenas – tendências históricas, mas também relativas ao gosto e temperamento de cada um? As notas a seguir foram escritas a partir dessas perguntas.
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Comparando as listas de amigos com a minha própria, e pensando em cenas mais frequentemente comentadas pela crítica, o tipo que logo se destaca é a set piece – o trecho composto com bastante consciência para ser algo emblemático. Este foi um tema recorrente no curso de crítica e análise, já que boa parte dos textos considerados nas aulas não apenas se debruçavam sobre essas cenas, mas viam em muitas delas uma concentração dos temas e das formas trabalhadas no filme como um todo.
A set piece é provavelmente uma herdeira das “atrações” do primeiro cinema. Foi Tom Gunning quem retomou o termo de Eisenstein para se referir a uma série de filmes nas décadas iniciais que não elaboravam tanto as narrativas, mas que, em vez disso, colocavam eventos de maneira frontal e direta, como se o entusiasmo da apresentação em si fosse o cerne da composição:
Sejam quais forem as diferenças que encontremos entre Lumière e Méliès, elas não devem representar a oposição entre cinema narrativo e não-narrativo, ao menos como a compreendemos hoje. Em vez disso, podemos integrá-los numa concepção que veja o cinema menos como forma de contar histórias e mais como meio de apresentar uma série de “vistas” ao público, vistas fascinantes por seu poder ilusionista (seja a ilusão realista do movimento dos Lumière, seja a ilusão mágica de Méliès), e por seu exotismo. Em outras palavras, acredito que a relação proposta ao espectador pelos filmes dos Lumière e de Méliès (e de muitos outros cineastas antes de 1906) tem uma base comum que difere das principais relações propostas por filmes narrativos após 1906. Eu chamarei esta concepção inicial de “cinema de atrações”.1
À medida que o “sistema narrativo” de Griffith foi estabelecido, e o longa-metragem se tornou a norma industrial, as atrações foram relegadas a episódios isolados, momentos de quase suspensão dramática, quando o espectador se depara com ações interessantes em si mesmas: são as gags na comédia burlesca, os números no musical, as perseguições no filme policial. De maneira geral, Hollywood parece ter como regra não declarada esse caráter de espetáculo pontual na construção dos filmes, independente do gênero. É como se, dentro da arquitetura narrativa, ao menos alguns momentos devessem ter uma certa autonomia. Talvez seja uma herança de artes como a música, o teatro ou a ópera – a noção de que uma obra deve ser estruturada em “abertura”, “ária”, “solo”, etc. Há um prazer específico nesse modo de construção (além de soluções variadas para como se pode integrá-lo a uma narrativa longa), e seria preciso conferir se a produção de outros países e continentes o explorou tanto quanto a dos Estados Unidos.
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Um outro tipo de cena é a que se destaca por algo mais particular daquele filme. Não tanto a estrutura convencional do gênero, mas uma virada narrativa, uma cristalização dos temas e das emoções naquele recorte. Vários desses trechos envolvem o uso da música, o que não parece casual: a música é uma forma econômica de sublinhar um bloco visual sem recorrer a um formato específico; pode acompanhar ações e diálogos, planos estáticos ou em movimento, desde que receba um valor pelo contexto.
Esse valor é muitas vezes emocional ou quase atmosférico, o que indica o quanto a música é responsável por emoldurar as imagens, garantindo a unidade e a legibilidade das cenas e das sequências. Por um lado, há com isso uma facilidade maior em fixar os trechos na memória. Por outro lado, surge uma tendência a cercar todo o movimento narrativo com peças musicais, de modo que a experiência é a cada etapa orientada ou mesmo definida pela banda sonora. Um exemplo disso são as músicas onipresentes na Hollywood dos anos 1940 e 1950, quando toda a dimensão visual parece tornada refém da trilha, muitas vezes composta em uma chave didática. O caso-limite é o que se convencionou chamar de mickey mousing, a música que emula ponto a ponto os movimentos visuais.
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Em alguns filmes, é mais difícil, e às vezes impossível destacar uma cena como sendo mais relevante ou chamativa que as outras. Em muitos, o objetivo parece ser justamente mergulhar o espectador naquele fluxo de maneira total, sem que as mudanças de decoro e os pontos de virada sejam percebidos. Há uma certa atenuação da retórica, a busca por um estado receptivo às variações mínimas da realidade. É o ideal do “vestido sem costura” mencionado por André Bazin.
Mas é também o que vemos em boa parte do cinema experimental, sobretudo aquele que desvia mais das convenções narrativas, e nos quais não há um equivalente da cena ou da sequência. Em alguns casos (em vários filmes de Stan Brakhage, por exemplo), o radicalismo não-figurativo faz com que a própria ideia de segmentação em planos seja posta em dúvida.
Interessante aqui é o fato de que as “duas vanguardas” foram ambas ligadas a essa possibilidade. São duas recusas do modelo narrativo tradicional, cada uma por uma via diferente.
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Outro tipo ainda é o momento completamente subjetivo: aquele destacado não pelo filme, mas pelo próprio espectador. Pode não ter um recorte ou uma ênfase, nada que separe o instante do resto da obra. É algo que simplesmente nos fascina por razões pessoais.
Pensando no que incluiria na minha lista, algumas cenas parecem se encaixar nos modelos anteriores, mas outras talvez sejam exemplos desse outro tipo. O que me leva a pensar se não há uma tipologia mais individual nas minhas cenas preferidas, e como ela poderia ser descrita.