045. A carne e o nervo
Informações sobre o curso – Vladimir Petrić, “Bergman e os sonhos” (1981)
Para quem estiver em São Paulo esta semana: na sexta-feira, dia 11/07, vou dar uma aula/palestra às 20h30 na mostra Film noir do Cine Satyros Bijou (em parceria com o Belas Artes à la carte). Deve ser uma fala panorâmica, sobre as raízes históricas do gênero, o desenvolvimento de um estilo e de uma iconografia, e a relação do noir com o cinema de outros países. Algumas ideias que espero comentar são as que mencionei nas notas sobre Richard Fleischer.
A programação da mostra pode ser conferida aqui.
O curso online Cinema e literatura: análises do mistério começa no dia 06/08. As inscrições devem ser feitas neste formulário. Lembrando que a inscrição é confirmada somente quando for realizado o pagamento. As informações sobre o valor, a chave PIX e o link para o Mercado Pago estão no texto do formulário.
As inscrições podem ser feitas até um dia antes do início das aulas. Mas em breve os alunos devem receber o acesso ao drive com os materiais – os filmes a serem analisados e os textos sobre eles –, e como é um curso bastante voltado à leitura e à discussão dos textos, uma inscrição em cima da hora significa menos tempo para conferir os materiais da primeira aula.
O texto a seguir é uma tradução minha do artigo “Bergman and Dreams”, de Vladimir Petrić, publicado originalmente em 1981 na revista Film Comment. Petrić escreveu alguns textos sobre a representação dos sonhos no cinema e editou um volume chamado Film and Dreams (também de 1981), centrado na obra de Bergman. Talvez seja o tema no qual a sua versatilidade como crítico seja mais clara: é o que permite a ele comentar nomes tão variados quanto Griffith, Kinugasa, Bergman e Tarkovsky, além de retomar escritos teóricos do cinema e também de psicólogos e neurocientistas.1
A relação entre o cinema e os sonhos é algo que pretendo elaborar em notas futuras. As tendências formais dos sonhos filmados e suas funções estruturais quase sempre levam a problemas de síntese ou revelação narrativa. No cinema, como na literatura, o sonho parece ser um modelo privilegiado da “codificação” dos conteúdos em formas não-verbais. Este deve ser também um dos motivos recorrentes no curso, no qual alguns filmes de Bergman serão analisados.
Outro tema relacionado, que espero abordar nas aulas e talvez desenvolver aqui em outro momento, são as formas de encobrir ou dispersar a psicologia de um personagem. Algumas leituras que recomendaria sobre isso são os textos escritos por James Elkins em sua newsletter, uma das melhores que conheço no Substack. Elkins é professor de artes visuais, mas também romancista e crítico literário, e seus textos frequentemente partem de questões teóricas para logo chegar aos desdobramentos criativos abertos por elas. Boa parte do que ele descreve sobre a literatura me parece adaptável ao cinema.
Vladimir Petrić, “Bergman e os sonhos” (1981)
De repente, há cerca de um ano, enquanto fazia A hora do lobo, descobri que todos os meus filmes eram sonhos. Claro, eu entendia que alguns dos meus filmes eram sonhos, que parte deles eram sonhos... Mas que todos os meus filmes eram sonhos foi uma nova descoberta para mim.
— Ingmar Bergman
A citação deve ser entendida figurativamente, é claro, mas indica até que ponto a mente criativa de Bergman transborda com imagens oníricas, alucinações, pesadelos e “pesadelos diurnos”. Mais do que qualquer outro diretor contemporâneo, Bergman se esforça para encontrar a expressão cinematográfica apropriada para os processos que ocorrem em sua mente inconsciente. Muitos filmes contêm sequências oníricas, mas geralmente são executadas como ilustrações temáticas do conteúdo narrativo do sonho, ou como apresentações teatrais de eventos bizarros, objetos curiosos e situações excêntricas. Bergman é talvez o único cineasta que explora a possível similaridade – não a identidade comum – entre os processos de sonhar e a experiência de assistir a um filme, ou, mais especificamente, o fato de que o cinema proporciona uma experiência onírica muito mais forte do que qualquer outro meio.
Acreditando que o cinema é “uma maquinaria idealmente adequada para capturar os movimentos mais delicados do pensamento e do sentimento”, Bergman utiliza a câmera para penetrar no mecanismo não apenas de um cérebro adormecido, mas também de um cérebro psicopático. Consequentemente, seus personagens são complexos e ambíguos, cheios de uma tensão que supera os conflitos dramáticos convencionais do roteiro. Essa tensão se manifesta nas sequências-chave que quase sempre representam eventos que o personagem vê e experimenta em um estado desperto ou semidesperto.
As introduções de pesadelo em Morangos silvestres (Smultronstället, 1957), as sequências de devaneio em Persona – e, acima de tudo, as alucinações de Johan em A hora do lobo (Värgtimmen, 1968) – demonstram claramente como dispositivos cinematográficos específicos, quando usados corretamente, podem intensificar o conflito dramático que ocorre na mente do personagem. Em sua totalidade, A hora do lobo pode ser lido como um “pesadelo diurno” ou uma alucinação do protagonista fisicamente deprimido; no entanto, a sequência em que Johan visita a sua amante imaginária (Veronica) no misterioso castelo é apresentada como uma visão alucinatória. Isso é evidenciado por dispositivos cinematográficos (luz e movimento de câmera, em particular) que ajudam o espectador a experimentá-lo de forma tátil.
É esclarecedor que Bergman tenha percebido que todos os seus filmes eram sonhos logo depois (ou, mais provavelmente, durante) as filmagens de A hora do lobo, que conseguiu transmitir a experiência alucinatória do protagonista por meio de dispositivos cinematográficos específicos com os quais Bergman havia experimentado. Um desses dispositivos é a intrusão súbita de um objeto escuro ou brilhantemente iluminado em primeiro plano. O filme – filmado em preto e branco, com muitas silhuetas – permitiu a Bergman e seu fotógrafo Nykvist alcançar “a luz tão cinza quanto cinzas sobrecarregando um ambiente macabro” no qual Johan experimenta seus desejos sexuais não realizados.
Bergman enfatiza repetidamente em seus roteiros que as sequências oníricas devem ter um impacto “tangível” sobre o público, e que devem ser “misteriosas em tensão, mas reais, ou seja, animadas com a carne e o nervo de imagens”. De fato, o problema central de Bergman na direção – ele o admite abertamente – é como encontrar “a carne e o nervo” apropriados para o conteúdo onírico descrito em seus roteiros de maneira puramente literária. Ele não se importa em ilustrá-lo por meio de tomadas extravagantes ou truques ópticos que se prestariam à interpretação de acordo com os princípios de Freud ou Jung; ele quer encontrar uma estrutura cinematográfica correspondente, capaz de estimular os centros sensório-motores do espectador de uma forma que nenhuma outra arte é capaz. Se devidamente realizada, essa estrutura pode intensificar o impacto perceptual do conteúdo onírico, tornando-o mais profundo e cativante do que se fosse apenas gravado fotograficamente. Não é coincidência, portanto, que as sequências oníricas constituam a parte mais cinematográfica dos filmes de Bergman.
Seria possível montar uma “Antologia de sonhos” das sequências oníricas de Bergman, o que revelaria uma conexão potente, embora subliminar, entre elas – e talvez esclarecesse mais a própria psique de Bergman, assim como sua obra. Em seu filme mais recente, Da vida das marionetes (Aus dem Leben der Marionetten, 1980), há um exemplo de sequência onírica extraordinária que marca um ponto crucial no desenvolvimento temático do filme. Ela revela os motivos e a gênese da frustração sexual do protagonista e de sua obsessão fóbica que resultou na morte de uma prostituta – representada em seu sonho por sua própria esposa. O filme começa com a sequência do assassinato (que, aliás, não existe no roteiro original), enquanto o restante do filme é uma exploração psicanalítica dos motivos e do estado mental do assassino (o protagonista). Entre uma dúzia de sequências, a sequência do sonho é a que melhor joga luz sobre o assassinato. A execução e a posição dramática dessa sequência dentro da estrutura narrativa geral do filme, que se assemelha a uma colagem, apontam para a preocupação particular de Bergman com o aspecto visual da imaginação onírica e com o subconsciente como um eixo psicológico em torno do qual se desenrola o conflito interno de seu personagem.
A sequência é apresentada como uma imagem superexposta em branco, com a câmera se movendo sobre os corpos em close-up, com uma mudança abrupta de ponto de vista. A ação (envolvendo os dois amantes se acariciando) parece ocorrer em um espaço indistinto, “sem os contornos do quarto”, mas os ângulos da câmera implicam que o ambiente se estende para fora do quadro da tela. A “luz ardente” domina as tomadas, separando visualmente a sequência do restante do filme, assim como a primeira sequência (o assassinato) é diferenciada por ser filmada em cores.
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Instruções de direção no roteiro original de Bergman (impresso antes do início da produção) mostram sua profunda consciência da diferença entre a experiência cinematográfica de um sonho e a sua descrição verbal, por mais eficaz que possa esta ser como literatura. Isso é particularmente enfatizado nas direções para a sequência do sonho. Bergman diz explicitamente que é um “sonho lúcido” e o descreve da seguinte forma: “Sonhei que estava dormindo, sonhei que estava sonhando... Estou em um quarto fechado sem janelas ou portas, mas também sem teto ou paredes, possivelmente confinado em uma esfera ou uma elipse – não sei exatamente – nunca consegui me forçar a examinar os contornos do quarto. A luz era cinza, fluida e indefinida, mais ou menos como uma manhã de inverno pouco antes do nascer do sol... Soube imediatamente que era tudo um sonho. Disse a mim mesmo que era um sonho, muito mais real que outra realidade, é verdade, mas um sonho mesmo assim.”
A descrição verbal de Bergman de uma “experiência horrível de um espaço fechado”, na qual o sonho se desenrola, não resolve o seu dilema de como expressar cinematograficamente o conteúdo específico do sonho. Ele revela seu dilema sem rodeios: “Como diabos isso deve ser feito? Onde colocar a câmera, como é o fundo, é uma janela, a carta pode ser vista, em que tipo de papel está escrita?” Essas perguntas surgem da descrição do sonho: “Eu escrevo, eu imploro, eu chamo, grito, berro – você pode me ouvir, ou algo mais próximo ocupa seu pensamento, querido Mogens? Se sim, seria natural. Deixe minha carta. Guarde-a ou jogue-a fora”. Bergman continua então a fazer perguntas: “Ele [o protagonista] fala o tempo todo? É um monólogo chato ou talvez haja cortes de rostos, corpos, um crepúsculo ou um trecho de água. Diz no texto que ele tem olhos nos dedos? (‘Em cada dedo eu tinha um olhinho que, com prazer cintilante, registrava toda essa brancura reluzente e o próprio flutuar.’) Devemos encomendar os olhos de esmalte a um oculista e depois colá-los nas pontas dos dedos do ator? [...] Estou anotando palavras que devem representar as imagens que vislumbro. Não há soluções práticas – talvez elas apareçam, talvez não. Não sei. Podemos mostrar arranha-céus em chamas ou gorilas; custa dinheiro e esforço, mas pode ser feito. Mas como vamos mostrar um processo mental?”
A pergunta final é, de fato, o núcleo do método de direção de Bergman e a essência de um cinema que lida com visões interiores e a psique humana. Uma análise detalhada da sequência do sonho em Da vida das marionetes demonstra como Bergman resolveu esse problema no processo de filmagem. O solilóquio verbal de seis páginas (no qual Peter Egerman descreve seu pesadelo, seu sonho lúcido, ao psiquiatra) é brilhantemente transposto para uma experiência visual “sensual” e “tangível” de um “sonho fortemente perfumado”. (Esta é a primeira vez que um roteiro de Bergman especifica “cheiro” como um componente da percepção cinematográfica).
A textura pulsante da imagem sugere que a sequência foi originalmente filmada em cores e depois impressa em película em preto e branco, ou que uma técnica de revelação particular foi usada para alcançar a “brancura reluzente” que tem um impacto hipnotizante no espectador. A “luz cinza, fluida e indefinida” domina as tomadas, dando a ilusão de um espaço amorfo e difuso, mas real e físico. A sensação é intensificada ainda mais pelo movimento meticuloso da câmera, tanto em close-ups quanto em planos médios sobre os corpos dos dois protagonistas, que são contrastados com o plano introdutório extremamente distante e aéreo dos amantes nus adormecidos – um ponto de vista marcadamente estacionário que lembra muito as fotografias de lapso de tempo publicadas para documentar a pesquisa científica sobre a fisiologia do sonhar.
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Esta é, sem dúvida, a sequência de sonho mais cinematográfica de Bergman, e, portanto, mais complexa em seu significado do que as sequências de sonho em seus outros filmes. Por exemplo, uma das duas sequências oníricas em Face a face (Ansikte mot ansikte, 1976) também é explicitamente um “sonho lúcido”. Depois de se ver deitada morta no caixão, devorada pelas chamas, Jenny exclama: “Se eu pudesse acordar”, confirmando que está ciente de estar dormindo e sonhando. No nível cinematográfico, no entanto, esta sequência é executada de forma bastante teatral: mostra eventos bizarros sem componentes audiovisuais suficientes para intensificar o clima assustador e a tensão fóbica de um sonho causado por uma overdose de pílulas para dormir.
O conflito entre luz e escuridão é, no geral, a substância visual da imaginação onírica de Bergman. Ele articula isso dizendo: “A luz sempre me fascinou. Todas as minhas experiências visuais estão ligadas à luz. Minha relação com Sven Nykvist é baseada em nossa experiência da luz – em decidir qual iluminação terá cada cena”. Em Da vida das marionetes é, de fato, o contraste claro-escuro que transforma a narrativa literária em uma experiência genuinamente cinematográfica. E é provavelmente por isso que Bergman mudou sua decisão inicial de filmar todas as sequências de flashback em cores, e acabou usando-as apenas nas breves sequências introdutórias e finais. O restante é uma combinação hipnótica de preto, luz e cinza – ou, para usar as próprias palavras de Bergman, “a luz intolerável carregada de ansiedade e depressão”.
A brancura imaculada e flutuante que satura esta sequência apaga todos os limites materiais (os “contornos”) característicos de um espaço físico. Imersos em tal “luz inexplicável”, os corpos humanos não são percebidos levitando no ar (como é frequentemente feito em sequências de sonhos convencionais); em vez disso, a brancura – em sua constância – funciona como um fundo materialista contra o qual o evento ocorre. A imagem é onírica em seu próprio nível fenomenológico, o que cria um espaço cinematográfico real, “tangível”, tão poderosamente visual que é desprovido de qualquer som: os dois amantes movem os lábios, mas as palavras não são ouvidas. No entanto, assim como em nossos sonhos, sabemos o que é dito, embora não ouçamos as pessoas falando. Então, um som estranho (“composto de apenas três ou quatro tons”) aparece do nada para intensificar a dimensão ecoante da brancura. O movimento é gradualmente desacelerado e segmentado por fusões de lapso de tempo, o que confere ao evento uma aparência de pesadelo, enquanto a câmera se move para uma visão muito próxima do olho do protagonista antes de desaparecer em uma tela completamente branca.
Assim, no final deste sonho lúcido, a brancura da composição pictórica da tomada se torna a brancura física da tela do cinema. Brancura dentro de outra brancura: uma ilusão, o sonho, que um momento antes estava afetando a realidade do espectador, é destruída e revelada como um tecido branco retangular. Aqui, Bergman se aproxima da fenomenologia da projeção cinematográfica – um sonho a vinte e quatro quadros por segundo. A identificação-equação da brancura da tomada com a brancura da tela é repetida quatro vezes nesta sequência, intensificando assim a luz como o elemento central no método de direção de Bergman. Além disso, as tomadas (principalmente em close-up) são conectadas por lentas fusões que “esticam” o tempo cinematográfico, assim como o movimento da câmera e a falta de cenário “estendem” o espaço físico do ambiente não identificado. A fotografia em branco também é usada na sequência de recordação, quando Peter descreve sua esposa Katerina a seu psiquiatra: a pele do casal é percebida como uma textura transparente, enquanto o fundo se transforma em um cenário cinzento e sem forma.
No nível interpretativo, a sequência do “sonho lúcido” serve como um microcosmo da filosofia do filme. Desde o início, Peter sente-se alienado, claustrofóbico, “preso” em sua própria depressão, cuja origem ele não consegue detectar. Na sequência da cozinha, após uma noite sem dormir, ele diz à esposa: “Todas as saídas estão fechadas”. Ela tenta ajudá-lo, sem resultado; o relacionamento deles se deteriora rapidamente. A sensação claustrofóbica é acentuada ainda mais pelo fato de que todo o filme é rodado em interiores, com tetos pairando sobre os personagens. (Apenas algumas tomadas externas do tráfego noturno e uma entrada de jardim ao crepúsculo são inseridas como transições entre as sequências.) Perto do final, na sequência do bordel, Peter diz à prostituta, cujo nome também é Katerina: “Todas as estradas estão fechadas”. Ele corre de uma porta a outra, enquanto a prostituta afirma calmamente: “Sim, todas as portas estão trancadas!” A mise en scène concretiza o clima geral da narrativa, que começa com o trágico final: percebendo que não há saída para ele, Peter mata a prostituta e realiza o ato sexual com seu corpo morto. Ele se entrega à demência, perdendo todo contato com o mundo exterior e retornando a uma fase infantil da consciência.
Se a afirmação de Bergman de que todos os seus filmes são sonhos deve ser tomada simbolicamente, segue-se que na sequência do sonho de Marionetes ele usou sua imaginação criativa para encontrar a melhor expressão cinematográfica. Obviamente, não foi fácil. Em certo momento do roteiro, ele se desespera abertamente: “Por que os sonhos se escondem, por que não se deixam materializar por uma máquina idealmente adequada para capturar os movimentos mais delicados do pensamento e do sentimento?” Mas, neste filme, Bergman provou que é possível alcançar uma visão cinematográfica que, de muitas maneiras, corresponde à experiência de sonhar. Os conceitos verbais, assim, tornam-se imagens em movimento com uma autenticidade ontológica perceptual que possui a tangibilidade das imagens de um sonho.
Comparando a descrição literária do conteúdo do sonho de Bergman com sua apresentação cinematográfica, concluímos que o roteiro descreve o conteúdo do sonho tal como existe no cérebro do adormecido antes de ser incorporado à imagética onírica desencadeada pelo mecanismo do sonho. Na forma escrita, o evento do sonho é basicamente narrativo em sua estrutura, sem características visuais substanciais, apesar de lidar com imagens concretas na imaginação do leitor. Este conteúdo narrativo do sonho é, então, visualizado no processo de filmagem, o que pode ser comparado à “revisão secundária” de um trabalho de sonho. Cinematograficamente, essa revisão secundária significa dar “a carne e o nervo” adequados ao “fluxo sutil da psique humana em seu estado de sonho”. Isso também significa que o conteúdo do sonho roteirizado é transposto para a imagética cinematográfica, não apenas sendo fotografado à medida que se desenvolve através da mise en scène (da ação dramática), mas que é condensado, distorcido, reorganizado, deslocado, abstraído e autenticado ontologicamente. As melhores sequências oníricas de Bergman possuem a maioria dessas características que as tornam pontos culminantes dentro da estrutura narrativa do filme.
A decisão de Bergman de publicar seus roteiros em sua forma inicial, sem alterá-los de acordo com o filme concluído, prova claramente que “todas as soluções práticas” para a apresentação cinematográfica dos sonhos descritos tornam-se “aparentes” durante o processo de filmagem. É nesse ponto que a imaginação de Bergman começa a funcionar nos termos do meio cinematográfico. Nesse estágio da criação, os dispositivos literários usados no processo de roteirização são substituídos por dispositivos cinematográficos, de modo que todos os conceitos metafóricos e as ideias abstratas se tornam palpáveis e críveis, apesar de suas reverberações misteriosas e implicações elusivas.
Pode parecer estranho que Bergman sequer tenha considerado a ideia de colocar “olhos de esmalte” nas pontas dos dedos do ator. Mas na forma literária, essa ideia funciona como uma metáfora de pesadelo revelando a imaginação infantil do protagonista. Ela implica a ingenuidade da psique onírica do personagem, não uma indicação ingênua do diretor. Claro, os “olhos de esmalte” não foram “encomendados ao oculista” para as filmagens; em vez disso, o “olho da câmera” foi empregado como um explorador penetrante da mise en scène organizada na frente da câmera. É o exame óptico do mundo físico pela câmera que revela o aspecto transcendental da experiência onírica em Da vida das marionetes.
Essa é a maneira única como Bergman mostra processos mentais; esse é o seu tratamento cinematográfico de fenômenos psicopáticos. A interpretação das imagens oníricas e do subconsciente de Bergman pode ser mais ou menos esclarecedora e útil – mas somente depois que reconhecemos os raros valores cinematográficos da obra de Bergman a leitura de suas sequências oníricas pode ser completa e gratificante. Só então a experiência dos sonhos nos filmes de Bergman pelo espectador ganhará sua plenitude.
— Film Comment, vol. 17, n, 2 (março-abril de 1981), pp. 57-59.
A tese de doutorado de Petrić, sobre a influência do cinema soviético no cinema dos EUA, já foi objeto de algumas notas aqui na newsletter. Organizei os comentários em duas partes, uma voltada à influência teórica e outra à influência prática.